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relato crítico | Arq. André Tavares

André Tavares
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Uma aproximação crítica e desordenada à razão e forma de ser da Ordem dos Arquitectos. Relatório crítico no âmbito do 1º debate Está tudo/tuto em discussão.
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Advertências

Primeira
Perante as problemáticas e as dificuldades de facto que hoje atravessam o exercício profissional da arquitectura, talvez seja de questionar a pertinência do debate estatutário – exceptuando apenas a obrigatoriedade estatutária da sua revisão, paradoxalmente impossível pela própria blindagem dos estatutos. Convém ter presente que a discussão dos estatutos e, até, a revisão dos estatutos da Ordem dos Arquitectos (como de qualquer outra instituição) é, por si só, significativamente inoperante. Os problemas resolvem-se com a acção e, só muito raramente, com boa vontade. Não obstante, o debate estatutário poderá ajudar a esclarecer impasses e dúvidas que a acção quotidiana da Ordem dos Arquitectos dificilmente ajudará a resolver.

Segunda
Quando me solicitaram o desempenho do relato crítico das sessões de debate alertei os responsáveis para dois aspectos que poderiam desaconselhar a escolha do relator: o meu domínio pouco esclarecido de uma parte significativa das matérias em causa; algumas ideias e convicções pessoais eventualmente pouco ortodoxas para as quais o relato crítico das sessões poderia ser um bom terreno de experimentação. Aceite o terreno da polémica, as notas seguintes percorrem temas e teses recolhidos no âmbito dos debates.

Terceira
As opiniões expressas nestas notas são pessoais. Contudo, apropriam-se descaradamente de várias ideias, argumentos e interpretações de outros intervenientes no debate. A todos agradeço os contributos e desculpo-me das deturpações e desvios inevitáveis num texto de opinião.
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Primeira sessão, 29 de Maio: âmbito e atribuições.

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Qual deverá ser a ambição da Ordem dos Arquitectos?

A Ordem dos Arquitectos existe porque o Estado não quer confiar apenas ao Governo a responsabilidade que o saber profissional da arquitectura implica na organização social e física de um país e, o Governo, aceitou delegar nos arquitectos essa responsabilidade. Portanto, o Estado confia aos arquitectos – que já demonstraram as capacidades necessárias e suficientes para garantir esse saber – a tarefa de acautelarem o interesse público nessa matéria e de se regularem a si próprios. Pode-se discutir se a delegação de poderes é a melhor estratégia para garantir um Estado funcional, tanto mais quando aquilo a que se assiste no quotidiano é que essa delegação de poderes é sistematicamente cilindrada pelo poder de facto, seja esse poder do governo, das autarquias, das instituições públicas, das companhias seguradoras, dos grupos de opinião, da imprensa, etc. Talvez isso explique a ambição, ou a necessidade premente, que os arquitectos querem que a sua Ordem conquiste: poder.

Mas poder para quê? E poder sobre quê?

A primeira pergunta é de resposta fácil, simples e inequívoca: liberdade.

A resposta pode parecer out of fashion, ou já um pouco ultrapassada, mas é basilar admitir que a principal atribuição de uma instituição – que é, em última análise, um órgão do próprio Estado – é garantir a liberdade dos cidadãos em particular e do povo colectivamente. Não se trata apenas de admitir que a arquitectura é um direito e que, para podermos usufruir da nossa liberdade, temos de ver garantido esse direito. Trata-se de admitir que os arquitectos estão em posse de um conjunto de saberes e de práticas que permitem gerir os conflitos sociais que decorrem da transformação física do território e, assim sendo, que os arquitectos têm de ter liberdade para agir e por em prática esse saber. Se um arquitecto não dispõe dos meios e das liberdades necessárias para poder desempenhar a sua profissão, então não está a ser respeitado socialmente e a liberdade constitucional que lhe devia ser garantida como indivíduo está posta em causa. A Ordem tem de conquistar poder para defender a liberdade dos arquitectos para exercerem, sem compromissos impróprios, a sua profissão.

Para a pergunta do poder sobre quê é que a resposta se torna muito complicada. Talvez seja melhor reformular a pergunta e tentar entender: como é que o arquitecto pode exercer, livremente, a sua profissão? Aqui a resposta será mais pacífica: tendo autonomia e capacidade para praticar, sem interferências e pressões externas, os actos próprios da sua profissão. Contudo, sabe-se que o exercício da profissão é uma actividade de síntese numa posição de articulação complexa de interesses e ambições sociais, em que o arquitecto traduz num projecto, resultante de um acto criativo e sintético, a instabilidade das ambições de transformação do ambiente num determinado momento. Na liberdade do arquitecto não está em causa a supressão das liberdades e ambições dos múltiplos actores implicados no projecto e na obra de arquitectura, está, isso sim, implícita a capacidade de responder com os instrumentos específicos da sua profissão às exigências e solicitações do novelo complexo de interesses que o seu acto criativo vai moderar. E se esta actuação pode ser facilmente livre no momento do exercício autónomo do projecto, essa liberdade torna-se altamente difícil de garantir noutros momentos decisivos da participação social do arquitecto, sobretudo em cargos de decisão hierarquicamente dependente, onde a vontade política pode, e muitas vezes prevalece, sobre a vontade profissional. É esse poder, conquista hierárquica, que os arquitectos parecem querer reclamar para a sua profissão.

Os arquitectos estão numa encruzilhada. Por uma lado, o poder legislativo cede a múltiplos grupos de pressão e interesses e cria uma rede complexa de legislação, impossível de unificar num documento perceptível. A complexidade do exercício da profissão, espelho da complexidade das estruturas sociais a que se refere, esbarra na impossibilidade de criar soluções lineares e tranquilas para as muitas contradições legislativas que existem. E, não fosse apenas essa aparelho legal peculiar, o poder de facto e a possibilidade de o exercerem arbitrariamente que muitas instituições do Estado dispõem, colocam o arquitecto numa posição impossível e impensável na sua relação com os actores sociais que recorrem aos seus serviços. E não há razão que lhe valha. Portanto, o poder que os arquitectos devem conquistar é, em última análise, o da sua própria liberdade e a possibilidade de essa liberdade ser respeitada.

Actualmente a Ordem dispõe de um poder interno, ou seja, é capaz de se fazer respeitar e dispõe dos instrumentos necessários para impor o cumprimento do Código Deontológico. O que não dispõe, ou que tem dificuldade em fazer valer, é de capacidades e meios de fazer prevalecer os argumentos do grupo profissional que representa perante os diferentes poderes do Estado, seja o poder legislativo, o poder executivo ou o poder judicial. Consequentemente, o poder que se procura é externo.

Será que essa conquista de poder se faz através da revisão dos estatutos?

E será que esse poder que se quer conquistar é legítimo, necessário ou útil?
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O que se está a passar com os arquitectos que constituem a Ordem?

É desnecessário insistir na transformação radical que, nos últimos anos, ocorreu no corpo profissional dos arquitectos em Portugal. A imagem do arquitecto autor de projecto ou do arquitecto como profissional das instituições do Estado é falaciosa. Com o aumento exponencial do número de profissionais, aumentaram também as formas de exercício e, sobretudo, as práticas de hierarquização e distribuição profissional. Esse aumento, ao invés de dar força e ampliar a capacidade de intervenção social dos arquitectos, introduziu níveis de complexidade e interferências que confundiram a capacidade reivindicativa da instituição.

A delegação de poderes implícita na constituição da Ordem, ao resvalar para o âmbito da representação do grupo profissional, implica uma lógica corporativa de facto que é coincidente com a defesa externa dos interesses da classe e, naturalmente, avessa à regulação de diferentes grupos de interesse no interior da classe. Esta vocação natural da Ordem parece inviabilizar que, como instituição, tome a iniciativa de promover a defesa do interesse de arquitectos perante outros arquitectos. Ou seja, à vontade de actividade sindical e perante a constituição de uma hierarquia dentro da classe, a própria natureza do exercício livre da profissão implica que, estando numa posição subalterna, o arquitecto que reivindica condições perante outro arquitecto esteja, implicitamente, a abdicar do exercício dos actos próprios da profissão, reservados apenas ao topo da hierarquia profissional.

Nas condições actuais, assinalar a necessidade da existência de um sindicato dos arquitectos parece evidente. Porém, parece também evidente e plenamente assumido por diferentes sectores do grupo profissional, que a estrutura desse sindicato deverá ser autónoma e partir de uma iniciativa externa à instituição, independentemente dos principais interessados serem membros da Ordem. Contudo, não é de ignorar que a própria mudança das condições de exercício da profissão e dos seus profissionais e, sobretudo, a legitimação externa que se pretende obter para a prática da arquitectura, exige uma atenção particularmente cuidada às condições que a própria Ordem sugere ou procura conseguir para os seus membros. Ou seja, perante o cenário de desqualificação generalizada do exercício na relação hierárquica da profissão onde sobressai o regime de colaboração, terá a Ordem capacidade de exigir respeito e qualificação ao nível da encomenda e da remuneração dos serviços prestados pelos seus membros? E esta questão, também poderia bifurcar para os arquitectos assalariados em municípios e outras instituições do Estado, embora as problemáticas sejam relativamente divergentes.
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Quais deverão ser os limites e as frentes de acção da Ordem?

Poderá dizer-se que compete à Ordem orientar a sua acção em três vectores de actuação, que permitam não apenas «lutar pela sobrevivência da classe» mas também estruturar a sua acção numa prática simultaneamente orgânica e metódica. O primeiro vector é de natureza topológica, um exercício constante de localização e auto-referenciação que permita à instituição medir os limites e avaliar as qualidades da profissão, interpretando-a, criticando-a, premiando-a, etc. O segundo vector é de natureza relacional, garantindo a credibilidade social da arquitectura e sistematizando os instrumentos de direito e prática da profissão. Finalmente, o terceiro vector chave é de ordem disciplinar e deve regular, vigiar e punir, exercendo autoridade no seio do agrupamento profissional.

Este comportamento ponderado corresponde a um equilíbrio ideal que, contudo, tem dificuldade em encontrar tradução no quotidiano da acção da Ordem. Essa acção parece percorrer um caminho que se centra, sobretudo, na defesa da disciplina e da profissão, em afirmações que escondem alguns eventuais equívocos sobre a própria natureza do agrupamento profissional: «a arquitectura é mais importante do que os arquitectos»; «estamos a defender a arquitectura e não os arquitectos». Ora essa convicção altruísta incorre no risco de baralhar os vários vectores que se devem ponderar com a própria consciência de classe, ou seja, os arquitectos agrupam-se para, em primeiro lugar, defenderem os seus próprios interesses corporativos e, com essa defesa, garantirem as condições para exercerem livremente a sua profissão.

Ao tomar as questões disciplinares como meta da acção do grupo profissional pode-se, e incorre-se, num perigo de equívoco social sobre o próprio papel da corporação profissional. Ou seja, sabendo a sociedade que uma Ordem é um agrupamento profissional corporativo, onde quererá chegar o discurso isento, neutro e bondoso da defesa da arquitectura? Por outro lado, falta averiguar se a Ordem, como instituição corporativa, tem de facto a capacidade de percorrer todas as escalas e orientações para a «defesa da arquitectura».

No que respeita ao âmbito e às atribuições da Ordem este é um aspecto decisivo: quais os limites da sua acção e sob que nome balizar essa acção. Convém não confundir os aspectos disciplinares da arquitectura (que podem e são organizados em contextos e instituições específicas), com os aspectos sindicais e hierárquicos no interior da classe profissional (que deveriam ser estruturados à margem da própria corporação) e, finalmente, com as condições do exercício da profissão de arquitecto que é, em última e primeira análise, a razão do agrupamento de interesses pessoais numa estrutura colectiva de representação, organização e vigilância.
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Um pouco de bom senso

As questões debatidas referem-se, talvez mais do que aos estatutos em si, ao comportamento e orientações directivas da própria Ordem. Os estatutos devem reflectir a natureza e os limites de acção da instituição mas, sobretudo, devem ser o suficientemente abertos e imprecisos. Só assim se conseguirá, a cada momento, ter uma compreensão lata e ampla das capacidades e qualidades de acção do corpo profissional e dos seus órgãos representativos. O que é necessário não é rever os estatutos mas sim encontrar plataformas de coesão (e de cisão também) que permitam partilhar uma ideia de acção corporativa dos arquitectos capaz de lhes garantir melhores condições de trabalho.

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participe no debate, envie a sua reflexão para comunicacao@oasrn.org