André Tavares
Uma aproximação crítica e desordenada à razão e forma de ser da Ordem dos Arquitectos. Relatório crítico no âmbito do debate Estatuto e tudo em discussão. (primeiro rascunho)
Terceira sessão, 13 de Outubro: actos próprios da profissão.
Uma sociedade ambígua.
O actual estatuto é claro ao determinar que só os arquitectos inscritos na Ordem podem, no território nacional, usar o título profissional de arquitecto e praticar os actos próprios da profissão. Dessa assumpção resulta que a definição dos actos próprios da profissão determina não apenas o que faz um arquitecto mas, sobretudo, o que não podem fazer os indivíduos que não são membros da Ordem. É seguindo este raciocínio que se torna imperativo definir com clareza os actos próprios, aprimorando a modo como são enunciados para, delicadamente, evitar as suas fragilidades no confronto com a realidade da sua aplicação. Quem não for arquitecto, e praticar os actos próprios definidos no estatuto, incorre em «crime de usurpação de funções».
Não é preciso estar muito atento para ter a certeza que a sociedade portuguesa não está interessada, nem cumpre, essa determinação de exclusividade patente no estatuto da Ordem dos Arquitectos. Assim como os arquitectos também não se inibem de praticar funções exclusivas de outros profissionais, nomeadamente ao elaborarem pareceres jurídicos (Ordem dos Advogados) ou estudos económicos (Ordem dos Economistas), para citar apenas dois exemplos. Mas se descontarmos o atrevimento dos arquitectos noutros campos profissionais, há uma clara discrepância entre o definido no estatuto da Ordem dos Arquitectos e a realidade da sua aplicação. O debate é longo e tem-se arrastado por muitos anos: a legislação portuguesa não impede (antes incentiva) a intervenção de profissionais com qualificações estranhas à disciplina da arquitectura no campo seu profissional específico.
Caberá então perguntar, qual o sentido da definição de «actos próprios da profissão» se outros profissionais os praticam com alegria e satisfação de todos (ou apenas com a insatisfação dos arquitectos)? Se a sociedade não está preocupada com essa salvaguarda, como o está para a clássica restrição da medicina, porque estarão os arquitectos preocupados com isso? Será apenas para, corporativamente, conquistarem um campo profissional exclusivo?
Nem só os arquitectos se vestem de preto.
O apuramento e clarificação dos actos próprios da profissão de Arquitecto parece interessar, sobretudo, ao reconhecimento interno da própria classe. Admitimos uma definição genérica de actos próprios. Essa definição, tão ambígua como abrangente, esclarece esse sentido maior da prática da arquitectura. Nela se reconhecem todas as práticas que os arquitectos desempenhem actualmente, independentemente da cor da camisola. Como formular essa definição?
Ao arquitecto cabe a concepção e o desenho do quadro espacial da sociedade. Ele é um intelectual liberal que concebe e instrui a prática dos diferentes intervenientes no processo de construção, garantindo que o resultado final cumpre as expectativas prévias. Mas onde é que se dá essa concepção? No momento da definição ou na invenção das expectativas? Na sua consubstanciação em obra? Na criação das condições operativas para que haja expectativa ou para que haja obra? E como se processa a sua intervenção? Através do desenho? Na aplicação de regulamentos? Na gestão da obra? E a que escala é que se é arquitecto? A desenhar mobiliário ou cidades?
A definição deverá ser simples e concisa para que, no seu interior, sobre o campo suficiente para se poder ser arquitecto e incorporar a riqueza disciplinar que a acepção do que é a arquitectura contém. As especificidades do onde, quando e como, apenas criam a ilusão de ser possível definir, e excluir, corporativamente, quem não se enquadre no objecto tal como se pretende definir. A arquitectura, tal como a literatura, é uma arte maior que se desdobra e se descobre à medida da transformação da própria sociedade. Compreendidas num quadro de valores amplo e prospectivo, as restrições profissionais são contraproducentes.
De que cor se vestem os arquitectos?
Se a definição dos actos próprios da profissão ganha em ser ampla e, se a sociedade teima em manter o privilégio de não serem apenas os arquitectos a «fazer arquitectura», parece ser vantajoso desistir de impor à sociedade a exclusividade corporativa e ser útil reconhecer que a definição de actos próprios se destina essencialmente a consumo interno. Em boa verdade, serão praticamente só os arquitectos que se darão ao trabalho de ler o seu estatuto profissional.
Nesse caso, a definição de actos próprios não teria um peso significativo na organização formal da sociedade e serviria apenas para a consolidação do próprio reconhecimento interno. Seria uma espécie de espinha dorsal das inevitabilidades que fazem de um arquitecto um arquitecto. E, reconhecendo-se entre si, os arquitectos poderiam disputar de um outro modo o seu campo de acção e a sua responsabilidade social. Por exemplo, isentar de licenciamento municipal as obras projectadas por arquitectos, já que estes partilham um código deontológico que garante o respeito das normas sociais e mantém uma vigilância interna, baseada na partilha de uma acção própria, capaz de garantir a sua idoneidade profissional. Neste exemplo, o que haveria a mudar era a organização legislativa da sociedade portuguesa.
Sendo inócua a definição de actos próprios no quadro legal em que nos movimentamos, cabe então a dúvida se não será mais prático adequar o estatuto à prática quotidiana, em vez de forçar (ou tentar, em vão, forçar) essa prática a uma esperança onírica (e corporativa). Se há utilidade pública no exercício da arquitectura e se o exercício de actos próprios não é apenas do interesse da classe, que seja a sociedade a manifestar esse interesse. À classe, resta-lhe definir com rigor, e sem ambiguidades, quais as características que a definem e, consequentemente, expressar pela acção colectiva exercida individualmente as qualidades que lhe estão inerentes.
Os arquitectos e o arco-íris.
A disciplina da arquitectura resistiu, tanto quanto pode, à especialização. Na escala, da colher à cidade. No uso, do móvel ao hospital. Na obra, da madeira ao polyester. Na prática, do esquiço à computação. Na forma, do neomanuelino ao minimal. Os arquitectos respondem com um saber que lhes é próprio organizando a informação que lhes é apresentada numa proposta transformadora do quadro físico (ou até imaterial) que lhes é proposto para a acção.
Como a experiência é a mãe de todo o saber, há uma tendência natural para que se peça a quem sabe de uma coisa que faça mais dessa coisa que sabe. Chama-se a isso a pescadinha de rabo na boca.
O nível de especialização do saber que atingiu a sociedade exige, em muitos casos, que a dedicação da aprendizagem e da experiência num determinado campo seja de tal ordem que se descurem, voluntariamente, outros campos do saber. No caso dos arquitectos, os «Colégios de Especialidade» existem para dar sentido a essas especializações e, progressivamente, para se constituírem em corpos disciplinares autónomos. Em que medida é que os actos próprios da profissão devem reflectir essas especializações?
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