Uma aproximação crítica e desordenada à razão e forma de ser da Ordem dos Arquitectos. Relatório crítico no âmbito do debate Estatuto em discussão.
Quinta sessão, 15 de Dezembro: Deontologia
Comunhão de adquiridos ou separação de facto?
Há muitos aspectos que exigem ajustes no Regulamento de Deontologia da Ordem dos Arquitectos, nomeadamente na sua relação com o Estatuto, em conflitos de sentido e sobreposições contraditórias entre os diferentes diplomas legais a que os arquitectos estão obrigados. Para fazer esses ajustes, nada como uma boa tarde de discussão especializada, entre arquitectos e juristas com prática de manipulação e aplicação da disciplina profissional. Assim se poderá elaborar uma proposta de adequação e simplificação dos actuais preceitos deontológicos em vigor. Trata-se, sobretudo, de um trabalho de redacção e adequação do português utilizado para aprimorar o sentido do articulado e poupar debates retóricos e redundantes. A deontologia dos arquitectos, porque pertence a um campo próximo do senso comum, parece não estar necessitada de grandes reformulações.
Contudo, o debate sobre os princípios deontológicos dos arquitectos transporta-nos para um problema extraordinariamente rico de sentidos e, em simultâneo, revelador dos principais impasses contemporâneos da arquitectura. Porque as questões da responsabilidade profissional, do desempenho disciplinar e outros aspectos da ética profissional são, genericamente, consensuais, as principais dúvidas deontológicas entre os arquitectos referem-se à concorrência. Como concorrem os arquitectos entre si?
Seguindo a tradição de raiz beaux-arts, ao longo do século XX os arquitectos habituaram-se aos concursos de emulação como o processo mais justo de competir. A escolha do “partido” (numa versão contemporânea o “partido” abastardou-se nas definições dúbias do “conceito”) definia as características estruturantes da resposta de projecto e, cada arquitecto, apresentava um ou mais “partidos” a concurso. A concorrência tinha lugar na escolha do “partido” adequado e na capacidade que cada arquitecto demonstrava em dar o “carácter” próprio e mais qualificado ao “partido” proposto. Ao contrário da concorrência entre os engenheiros, em que concorriam as soluções técnicas (o betão armado é mais eficaz do que a estrutura metálica), o arquitecto dispunha de uma competência generalista capaz de fazer as combinações necessárias entre as múltiplas solicitações a que a obra deveria responder. A qualidade da prestação de serviço do arquitecto dependia da sua capacidade para conjugar as contingências segundo o partido” adoptado.
O que caracteriza, hoje, a qualidade de um projecto? E como se define a qualidade da prestação de um serviço de arquitectura? A existir um tratado de arquitectura hoje, ele seria ainda mais árido do que o Metric Handbook.
No debate sobre a deontologia do arquitecto, ao procurar identificar as formas de concorrência desleal, para além dos comportamentos inoportunos e socialmente condenáveis, discute-se a disparidade dos níveis de prestação de serviço. Não estão em causa apenas a escala e o detalhe do desenvolvimento dos projectos mas, sobretudo, os níveis de especificação de soluções e a capacidade de cumprimento de normativas que, a cada dia que passa, são mais exigentes, contraditórias e obscuras. Esta tendência para focar o sentido da concorrência nos níveis de prestação de serviço (qual o número de quadros superiores que a empresa pode alocar à realização de um determinado projecto? quais os meios físicos e o equipamento disponível? qual a capacidade financeira do prestador de serviços? qual a experiência precedente na realização de obras semelhantes à do objecto da prestação de serviço?) cria um afastamento dramático entre a prática profissional e o domínio das características técnicas da disciplina. Por esta razão, os concursos de arquitectura deixaram de fazer sentido como forma de distribuição da encomenda. A concorrência deixou de se fazer ao nível da solução de projecto para passar a assentar quase exclusivamente nas capacidades de prestação de serviço. E é apenas a esse nível que parece ser possível regular o quadro deontológico para a actuação dos arquitectos. A disciplina da arquitectura dissolveu-se numa lógica tecnocrática sem disciplina. A profissão parece ter abandonado, quem sabe se definitivamente, a disciplina que lhe dá suporte e autonomia corporativa.
Um debate circular
O cenário da separação entre disciplina e profissão pode não ser tão drástico como o que acabei de apresentar. O conflito persiste na medida em que o debate entronca, sistematicamente, noutros campos. Por um lado, a corporação assume-se como guardiã da deontologia e garante da disciplina interna, entendendo-se por disciplina a aceitação de princípios disciplinares estabilizados: “não edificarás em leito de cheia.” Por outro lado, assume-se a especialização disciplinar como “evolução” natural do progresso do conhecimento: “se és urbanista não farás detalhes de carpintaria.” Este conflito ganha particular relevância nas franjas que a arquitectura partilha com outras áreas do saber, nomeadamente as engenharias que reclamam o domínio especializado da construção. Como consequência deste conflito, o debate deontológico transfere-se para a definição dos actos próprios da profissão. Hoje, uma das principais aflições na delimitação dos actos próprios da profissão é saber se o arquitecto deve, ou não deve, assumir a direcção técnica da obra. Este assunto pode parecer fugir à questão da concorrência. Contudo, parece ser uma das chaves explicativas da responsabilidade social do arquitecto e, portanto, um elemento fundamental para definir os critérios de concorrência entre arquitectos.
A complexidade e atrapalhação do aparato legal sobre o qual se exerce a profissão de arquitecto (dominando as ferramentas disciplinares), parece empurrar os arquitectos para fundarem os seus critérios de concorrência na capacidade de resposta objectiva às solicitações legais, independentemente da disciplina. Porque responsabilidade acrescida e, eventualmente, exterior à definição do quadro espacial do ambiente construído, a direcção técnica da obra, em muitos casos, é considerada uma competência prescindível para o exercício da profissão. Como se a existência de um aparato desenhado fosse suficiente para garantir a autogestão do estaleiro de obra. Nesta versão, o resultado construído seria decorrente do nexo do conjunto das peças desenhadas e, a figura do arquitecto coordenador, seria o garante da convergência de interesses e arbitragem de conflitos entre os diferentes especialistas (do programa funcional ao detalhe construtivo).
Numa outra perspectiva e desprezando os sistemas normativos porque reguladores do óbvio e limitadores do bom senso, a qualidade do projecto não consiste na capacidade de coordenar mas, pelo contrário, na exigência de conceber uma coerência estrutural capaz de conduzir os diferentes especialistas num sentido comum. A responsabilidade do arquitecto não é a do desenho, mas sim a do nexo do conjunto construído. Nesta versão, a direcção técnica é imprescindível por ser precisamente o garante da autoridade do arquitecto no confronto entre a sua concepção e eventuais divergências parcelares. Porque os arquitectos, com frequência, tendem a confundir esta autoridade com a autonomia disciplinar, ignorando a substância complexa com que se alimenta a própria disciplina, a sociedade tem vindo progressivamente a retirar a autoridade do arquitecto sobre a obra (a perda da competência sobre a direcção técnica é um exemplo lapidar).
Perante o autismo da autonomia disciplinar e o deslumbramento com a possibilidade de uma profissão mais quantificável, a profissão do arquitecto tem-se afastado progressivamente da sua disciplina de base. A prova é a impossibilidade (e a quase ausência de concursos públicos de arquitectura em Portugal é uma demonstração desse facto) de organizar a concorrência profissional segundo critérios e valorizações disciplinares.
O debate em torno da deontologia dos arquitectos, ao resvalar sistematicamente para aspectos do regime financeiro da Ordem (deontologia é ter as quotas em dia), para os âmbitos e atribuições da Ordem (a função da Ordem é exercer disciplina), para a sua estrutura orgânica (como articular os conselhos de disciplina a Norte e a Sul) e, sobretudo, para a indefinição dos actos próprios da profissão, tornou perceptíveis aspectos cruciais da prática da arquitectura, que explicam as movimentações da disciplina, num momento em que o âmbito social da profissão e as características sociais dos seus profissionais estão a ganhar características originais.