Desde há quase um quarto de século que venho escrevendo e publicando textos sobre concursos públicos de arquitectura em Portugal - e também passei por jurís de concursos, concorri a alguns, também analisei exposições de trabalhos, participei em polémicas, critiquei e apreciei obras resultantes de concursos. Sem preocupação de sistematizar, aqui deixo alguma reflexão sobre as consequências da prática do concurso público ou para encomenda pública em Portugal.
Sem extremar posições, diria à guisa de conclusão que nem o modelo concurso público e/ou para encomenda pública é um processo ideal de realizar arquitectura e de concretizar espaço urbano positivo - nem tãopouco é método antinatura, coisa a evitar, demónio de fugir. Apenas constituiu, e penso que constitui, desde pouco depois do 25 de Abril até hoje, mais um modo - num quadro democrático, plural e múltiplo da produção do espaço público - de o discutir, de o repensar, de polemizar e de consequentemente "construir saber", sobre a cidade, a arquitectura, a comunidade.
Recordo, por exemplo, o valor polemizante e patrimonialista do modelo Concurso, afirmado na transição dos anos 1970-80 pelo concurso para o Mercado de Leiria, emérita obra local por Ernesto Korrodi, que alguns então queriam destruir. Contribuiu mesmo na altura para a reafirmação do sentido e objectivos da então Associação dos Arquitectos. Hoje, visitando o Mercado recuperado, vemos como foi positiva a luta de conceitos e de visões da cidade então encetada.
Relembro também a importância de concursos como o de Ideias para a Zona Ribeirinha de Lisboa, nos meados da década de 1980 (promovido por Pedro Brandão com a AAP), no sentido de divulgar para o colectivo lisboeta as novas e vivificantes opções que, na relação com o rio Tejo, na "área de mais alma e significação" da capital portuguesa - e num tempo de claro obscurantismo municipal - poderiam surgir através da imaginação dos nossos colegas. Foi génese de debate, de programas de televisão, de posteriores projectos parciais (como o do Aterro da Boavista) - mas sobretudo ajudou a criar uma nova atitude cívica perante o território litoral da cidade, que veio a culminar noutra iniciativa notável (também objecto de um prévio concurso público de ideias) - a Expo 1998.
Evoco finalmente a importância da fórmula Concurso, para a garantia de qualidade de acções com dimensão internacional, como a do concurso para o Centro Cultural de Belém, ou a do Pavilhão Português para a Expo de Sevilha, ambos na transição dos anos 1980-90. Ambos desencadearam polérnica, por diversas razões - mas o resultado de Belém acabou sendo essencial na qualificação de Lisboa, e o de Sevilha afirmou o sentido renovado e de dimensão experimentalista na nossa arquitectura contemporânea.
Outros concursos terão tido resultados em obras públicas de valor e aceitação desigual, do bom ao aceitável, do medíocre ao negativo - ou mesmo, frustradamente, sem resultado em obra. A este propósito, lembro- me aqui de concursos como os da Torre do Tombo, do Martim Moniz em Lisboa, da nova sede da CGD, do Parque Urbano do Porto, da Palácio da Ajuda, da Assembleia da República - que, entre vários outros, povoaram as décadas de 80 a 90 com discussão pública e cívica, sempre útil e contributiva, sobre a cidade e a sua arquitectura.
Devo confessar ter a sensação de que, nos últimos anos, se tem visto a "solução Concurso" arredada muitas vezes, preterida pelo convite a arquitectos famosos, a estrelas do "Grande Circo Internacional da Arquitectura". Se tal tem dado igualmente alguns resultados positivos (veja-se o Projecto da Reconstrução do Chiado, onde esta tendência de "Convite em vez de Concurso" parece ter-se iniciado em Portugal), por outro lado também "apagou" as possibilidades de discussão, como sucedeu no Caso Foster, ou no presente caso Ghery, ambos para o Parque Mayer.
Efectivamente, sem projectos em disputa, perde-se um valor primacial para a discussão das ideias - que é o da possibilidade de comparar desenhos, desígnios, desejos, dos diferentes autores. E com os concursos apenas por convite, empobrece-se a potencialidade de revelar desconhecidos, de dar lugar aos não consagrados - base social e cultural de qualquer renovação de linguagens, de saberes, de práticas arquitecturais.
Que o Concurso está, como modo de produção de arquitectura, de provocação de debate, e de renovação de linguagens, vivo e de boa saúde - sempre que o queiram utilizar - prova-o a obra da Casa da Música, da qual todos vamos gostando cada vez mais, e que gradualmente vai sendo filha querida da cidade.
Lisboa, 12 de Julho de 2003
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