Mundo Imperfeito
É difícil escrever sobre Luís Ferreira Alves sem o associar à arquitectura de Fernando Távora, Álvaro Siza Vieira ou Eduardo Souto de Moura.
Iniciando a sua carreira de fotógrafo de arquitectura com um diaporama sobre a obra de Pedro Ramalho (exibido na Escola de Belas Artes do Porto em 1983) depressa se transformou (inadvertidamente ou não) no fotógrafo oficial da Escola do Porto, estabelecendo uma cumplicidade em tudo semelhante à de um Julius Schulman com os arquitectos da costa oeste dos EUA (Richard Neutra, Pierre Koenig, etc.) ou da dupla Hedrich-Blessing com os arquitectos residentes em Chicago (Frank Lloyd Wrigth, Mies Van der Rhoe, etc).
É na tradição de uma herança modernista que poderemos enquadrar o trabalho de Luís Ferreira Alves, sensível à luz, ao contraste, ao enquadramento, à textura. Afinal a arquitectura é um jogo sábio de volumes sob a luz do sol (Le Corbusier). Mas é também esse fotógrafo modernista que abdica de qualquer protagonismo para dar visibilidade à arquitectura e, não menos importante, às pretensões discursivas do arquitecto. Este sentido de encomenda tornaram durante décadas invisíveis fotógrafos com Shulman ou Ezra Stoller que viam as suas imagens serem publicadas sem reconhecimento de créditos fotográficos. Esta humildade assentava na ideia de que uma boa fotografia de arquitectura depende de uma boa arquitectura(1) o que hoje sabemos ser falso: um bom fotógrafo consegue fazer parecer bela uma má arquitectura na proporção inversa de uma má fotografia não corresponder necessariamente a uma má arquitectura.
O prazer com que Luís Ferreira Alves fala de arquitectura torna-o insuspeito na relação que mantém com a encomenda, mas não se pode dizer que o seu olhar se esgote na prestação deste serviço. Depressa descobriu que a encomenda representava uma oportunidade para outras abordagens de carácter mais intimista. Desviando-se do óbvio e previsível, esta aproximação mais intimista revelou uma especial atenção por temas menos correntes que, embora escapem à expectativa do arquitecto, ampliam o sentido da arquitectura. Esta será talvez a vertente mais autoral de Luís Ferreira Alves apesar do próprio dificilmente assumir este termo: Não serão imagens ditas de autor, porque de encomenda com o que isso implica de contingência; não o serão também porque não medraram nesse íntimo silêncio e solidão que uma imagem só nossa é. Mas sê-lo-ão, nalguma parte, porque o visto e reportado tem em si mesmo uma tal carga que bateu nessa intimidade, com ela se confundindo(2).
Na exposição Em Obra, constituída por 27 fotografias, Luís Ferreira Alves oferece-nos uma reflexão sobre a arquitectura em fase de construção, ou reconstrução, o que explica o título da amostra. Um grupo de fotografias do Palácio do Freixo (reconstrução da autoria dos arquitectos Fernando Távora e José Bernardo Távora) exibe sem pudor um património despido, decadente, à espera de atenção. Num primeiro olhar estas
imagens poderiam significar a denúncia de um tempo que menosprezou toda a dignidade da arquitectura; falamos de um património decadente, disfuncional, que não lhe foi sequer oferecida a possibilidade estética e romântica de se apresentar como ruína. Num segundo olhar, estas imagens, de uma qualidade estética em si inquestionável, estimulam uma abordagem capaz de exaltar uma beleza oculta mas pronta a emergir. Em Obra é por isso uma mensagem de esperança a partir das imagens que se recusam a ser auto-referentes (serem forma sem conteúdo), para serem cúmplices de um momento único de transição e expectativa. Seduzir é também induzir.
Mas há outro nível de cumplicidade entre as imagens e a obra. No que refere à especificidade das fotografias do Palácio do Freixo, ou do Mosteiro de Tibães, Luís Ferreira Alves oferece-nos a visão de um património
humanizado, isto é, um património fragilizado na sua essência mas paradoxalmente próximo de uma condição existencialista e algo absurda. Pormenores de frescos apagados, objectos estranhos à obra, estruturas expostas, entulho, lixo são imagens que perfazem uma ideia de desmistificação do património tornando-o perversamente mais próximo e quotidiano. Paradoxalmente, será isto que legitimará
repensar o património como lugar aberto a novos olhares e intervenções; um património dinâmico em transformação.
Todas estas imagens de Em Obra, fixam em papel um momento de transformação entre a ruína e a obra terminada. Há um qualquer fascínio inerente a este momento de transição (do qual os arquitectos não abdicam) e a exposição de algo que o tempo tornará invisível, mas que não se pretende esquecer. Mas mais do que documentar este momento há também uma oportunidade de explorar outros sentidos estéticos. Lembro a este propósito as fotografias de Lewis Baltz, da sua série Park City (1980) ou mais recentemente o trabalho desenvolvido por Cândida Höfer sobre a Embaixada Holandesa em Berlim projectada por Rem Koolhaas. Neste último caso imagens da Embaixada ainda em obra foram editadas num livro(3) que parece querer enfatizar uma estética que é também arquitectónica e coerente com o sentido de transitoriedade que Rem Koolhaas tem vindo a reclamar para a arquitectura(4).
São fotografias como estas de Luís Ferreira Alves que permitem aceitar a incomodidade provocada pelas obras de modo absolutamente tranquilo. De certa maneira estas fotografias, ao desvendar uma beleza oculta
onde à partida não há nada de belo, vão contribuir para uma domesticação de um cenário que apesar de efémero tem cada vez mais impacto. Uma obra acaba e logo outra começa, há transitoriedade mas há também permanência das obras, há o incómodo mas há também expectativa, como ironizavam Jorge Figueira e Luís Tavares Pereira na Revista Unidade 3: Portugal é bom quando estiver acabado. Até lá estas imagens
representam a bondade possível.
Durante séculos o nosso património arquitectónico era, para o bem e para o mal, entendido como um organismo vivo potencialmente sujeito a transformações. De certo modo, o próprio reconhecimento de valor patrimonial expressava essa acumulação de intervenções, que espelham a riqueza e complexidade histórica. Hoje, as políticas de preservação patrimonial têm quase sempre como consequência uma estagnação arquitectónica (dificilmente imaginamos Álvaro Siza ter a encomenda que Nasoni teve na Sé do Porto). As imagens de Luís Ferreira Alves devolvem-nos, nem que seja ilusoriamente, esse sentido de um património dinâmico, em suposta transformação, mas oferecem-nos mais do que isso, estas imagens não deixarão de evocar um sentido que quase nos levará a confundir a transitoriedade das obras com a eternidade da ruína, fundindo o início e o fim da arquitectura a infância e a morte, como na cena final do filme fotográfico La Jetée de Chris Marker.
Uma viagem no tempo, portanto.
Pedro Bandeira, Maio de 2008
Notas:
1. Ezra Stoller: Modern Architecture Photographs by Ezra Stoller.
New York: Harry N. Abrams, Inc. publishers, 1990, p. 6.
2. Luís Ferreira Alves: Tibães, imagens de um trabalho. Igreja folha de sala
da exposição apresentada na Sala do Recibo no Mosteiro de São Martinho de Tibães,
em Braga, entre Fevereiro e Abril de 2002.
3. François Chaslin e Candida Höfer: The Dutch Embassy in Berlin
By OMA Rem Koolhaas. Rotterdam: NAi Publishers, 2004.
4. Para desenvolvimento deste tema consultar Pedro Bandeira: Imagens de Rem Koolhaas
in Arquitectura como Imagem. https://repositorium.sdum.uminho.pt/handle/1822/6878
'Em Obra', exposição de Luís Ferreira Alves
co-organização: OASRN - DAAUM
comissário: Pedro Bandeira,
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Em Obra | Guimarães
9 de Maio a 6 de Junho 2008
Departamento Autónomo de Arquitectura da UM, Guimarães
Em Obra | Porto
4 e 11 de Julho 2008
10.º Aniversário da Ordem dos Arquitectos
nova sede OASRN, Porto
Em Obra | Braga
17 de Julho a 30 de Agosto 2008
Museu Nogueira da Silva,Braga
Em Obra | Aveiro
5 de Setembro a 5 de Outubro 2008
Casa Municipal da Cultura Fernando Távora
Em Obra | Lisboa
13 a 31 de Outubro de 2008
Sede da Ordem dos Arquitectos
Em Obra | Porto
20 de Janeiro a 20 de Fevereiro de 2009
Museu da Faculdade de Arquitectura da UP
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