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apresentação | Arq. Cristóvão Iken

#3 - Actos próprios da profissão

1.
Este ciclo de debates tem vindo, diria, não a autopsiar o EOA, mas sim a diagnosticar o actual EOA.
E, não gostaria de iniciar este 3.º debate sem sublinhar a delicadeza deste, em particular.
Efectivamente vamos hoje debruçar-nos sobre um dos aspectos mais importantes, senão mesmo o mais relevante, do EOA – a definição dos actos próprios do arquitecto e suas implicações.
É, digamos, como se hoje fossemos avaliar o coração de um paciente, a sua força e a sua capacidade de servir o corpo do qual faz parte integrante.
E é efectivamente necessário fazê-lo, na medida em que até este ‘órgão vital’, ou seja, este preceito fundamental do EOA tem, no meu ponto de vista, apresentado algumas fragilidades.

2.
No entanto, para um melhor desenvolvimento dos trabalhos importa, antes de iniciarmos o debate, clarificar por entre os presentes o conceito de actos próprios da profissão.
Em termos jurídicos, consideram-se actos próprios de uma profissão todos aqueles actos / actividades, de natureza profissional, claro está, que dada a sua complexidade e responsabilidade acrescida, bem como muitas vezes o seu interesse público, a sociedade considera deverem ser executados apenas por quem para os mesmos se encontre devidamente habilitado, quer por via de uma antecedente formação específica, quer por via de registo prévio em determinado organismo público.
O conceito de actos próprios traduz-se, nessa medida, numa reserva legal de funções – e, no quadro legislativo português, a defesa dessa reserva legal de funções é, no caso, tão forte que o Código Penal (art.º 358) prevê e pune como crime de usurpação de funções, o exercício de uma profissão, isto é, dos seus actos próprios (para a qual essa mesma Lei exige título ou preenchimento de certas condições), por quem indevidamente se arrogue possuir aquele título e aquelas competências/habilitações.
Os actos próprios são, portanto aqueles - e apenas aqueles - actos específicos cujo exercício se encontra adstrito em exclusivo a determinado grupo profissional.
Não incluem, portanto, aqueles actos que poderão ser também realizados por outros grupos profissionais, muito menos aqueles que o possam ser por pessoas inqualificadas.

3.
Contudo, a definição, no estatuto profissional dos arquitectos de um quadro de actos próprios, por si, não garante nada – ou, então, somente muito pouco.
A existência dessa definição apenas ganha eficácia pelo preceito legal referido no art.º 42, n.º1, do EOA que diz que “só os arquitectos inscritos na Ordem podem, no território nacional, usar o título profissional de arquitecto e praticar os actos próprios da profissão”.
É por força deste preceito, que a definição de actos próprios para a profissão de arquitecto, consagrada em EOA, passa a adquirir a condição de critério director da necessidade, ou não, de inscrição/registo na instituição.
Isto é, quem os pretenda exercer deve encontrar-se inscrito; quem não os pretenda exercer, não o necessita de estar.
Escusado será dizer que o carácter restritivo deste preceito entra, actualmente, em contradição com o quadro legal, permissivo e desactualizado, inerente ao regime de qualificação exigível a projectistas contemplado no ‘velhinho’ Decreto 73/73.
E, nessa medida, esta discussão em torno dos actos próprios do arquitecto entronca necessariamente no processo de revisão do 73/73 – ainda que este não deva ser o tema deste debate.

4.
Diz então o art.º 42, n.º 3 do EOA que “os actos próprios da profissão de arquitecto consubstanciam-se em estudos, projectos, planos e actividades de consultadoria, gestão e direcção de obras, planificação, coordenação e avaliação, reportadas ao domínio da arquitectura, o qual abrange a edificação, o urbanismo, a concepção e desenho do quadro espacial da vida da população, visando a integração harmoniosa das actividades humanas no território, a valorização do património construído e do ambiente”.
Repare-se nalgumas curiosidades:
Os actos próprios são definidos não por via de uma enumeração das actividades reservadas, mas sim por via daquilo em que essas actividades se materializam.
O conceito de domínio da arquitectura engloba a edificação, o urbanismo, a concepção e desenho do quadro espacial, etc. - mas jamais se referencia à arquitectura paisagística! Nem à arquitectura de interiores! Não faria sentido que o fizesse?
Por outro lado, o que é isso de ‘actividades de gestão de obra reportada ao domínio da arquitectura’? Ou ‘actividades de coordenação reportadas ao domínio da arquitectura’? Alguém consegue indicar-me uma?
O que achar disto?
Será, então, esta definição assertiva?
Como formatar, de resto, uma definição de actos próprios: de uma forma aparentemente generalista ou especificada, elencando actividades concretas?

5.
Parece-me fundamental que qualquer definição de actos próprios colha aceitação social e, nessa medida, deverá estabelecer um quadro de reserva de funções ponderado, razoável e, acima de tudo, claro ou inequívoco – o que não me parece ser, de todo, o caso.
Ainda que naturalmente cada profissão lute por ver alargadas as suas oportunidades profissionais por via da definição de um território profissional alargado, assente numa reserva de funções mais ampla, dificilmente uma sociedade nos aceitará tal ambição.
Valerá a pena querer consagrar como actos próprios actividades que a sociedade não reconheça minimamente como tal?
Por isso, a questão principal que a meu ver se coloca é, antes do mais:
Quais são efectivamente, por entre as múltiplas actividades actualmente desenvolvidas por um arquitecto, os actos passíveis de serem classificados como de actos próprios do arquitecto?
Isto é, quais são os actos que o arquitecto – e só este - deve executar, em exclusivo, e pelos quais, enquanto tal, deveríamos lutar até ao limite das nossas forças?

6.
A definição do domínio da arquitectura, incluída nesta definição de actos próprios, parece querer incluir no mesmo contexto, diversas sectores/escalas de actividade: a edificação, o urbanismo, … E, então, porque não paisagismo?
Será que se justificaria fazer disso ponto de partida para uma divisão do exercício da profissão segundo especialidades com carácter exclusivo: o urbanismo, a edificação, o interiorismo, o paisagismo?
Não deveria, nessa altura, a formulação dos actos próprios articular-se com a diferenciação do exercício profissional inerente aos hipotéticos diferentes colégios de especialidade profissional?
Será que cada um desses sectores correspondem a actos próprios diferenciados – ou será que estes são, por defeito, de natureza semelhante, apenas divergindo na escala e natureza do objecto em estudo e/ou de intervenção?

7.
Por outro lado, há mais de 10 anos vivemos um paradoxo.
O EOA proíbe aos arquitectos-estagiários de exercer em autonomia todo e qualquer acto próprio da profissão, enquanto que à custa do Decreto 73/73, profissionais muito menos qualificados em matéria de concepção e composição arquitectónica, os podem praticar e os praticam efectivamente.
Fará tal algum sentido?
Não seria porventura possível graduar os actos próprios do arquitecto, com o intuito de certos actos próprios, pela sua natureza e grau de responsabilidade menor, poderem ser executados já por arquitectos-estagiários?

Será, esta hipótese, isto é, a ideia de que um arquitecto-estagiário a partir de determinado momento do seu processo de admissão possa exercer em autonomia certos actos próprios, admissível?

8.
Como sabem, o EOA não exige que uma sociedade de arquitectura seja propriedade exclusiva de arquitectos, ao invés do que sucede p. ex. na advocacia.
Como enquadrar a reserva legal de funções inerente à definição dos actos próprios com o exercício da profissão de arquitecto em sociedades?
Não seria, p.ex., de exigir que uma sociedade de arquitectura, ainda que detida por não arquitectos, tivesse obrigatoriamente que ter uma direcção técnica assumida por arquitecto, forçosamente afecto ao quadro técnico dessa empresa?

9. e útlimo,
O já referido artigo n.º 42, n.º 1 do EOA obriga, no meu ponto de vista, de uma forma muito clara, que qualquer arquitecto estrangeiro, para exercer os actos próprios da profissão em território nacional, se inscreva na OA. Tal não tem acontecido, recorrendo-se, regra geral, a parcerias com gabinetes locais. Esta prática tem por consequência a não sujeição do arquitecto estrangeiro ao poder disciplinar da OA, o que me parece ser uma circunstância injusta, por desigual.
Como enquadrar a reserva legal de funções inerente à definição dos actos próprios com o crescente exercício de arquitectos estrangeiros, particularmente comunitários, em território nacional?

Cristóvão Iken

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